Um artigo no PÚBLICO sobre segredo de Estado. Dia 30 de Maio. Algo - segredos - a que me habituei quando escrevi o livro.
O estado dos segredos30.05.2009Quantos documentos têm o carimbo de segredo de Estado? Ninguém sabe. Não que seja segredo. Apenas ninguém fez as contas. Uma alteração à lei aprovada a 22 de Maio torna a Assembleia "guardiã do segredo de Estado" e cria um registo nacional de documentos classificados. Ainda assim, acessível a um muito restrito número de pessoas. Os segredos também têm histórias. Umas conseguem contar-se, outras ainda são... segredo. Por Nuno Simas Em 1974, depois da Revolução dos Cravos, Portugal e a União Soviética reataram relações diplomáticas, rompidas por causa de outra Revolução, a de Outubro, em 1917. A Aeroflot passou a fazer voos regulares para Lisboa, via Havana. A revista Vida Soviética, na sua versão em português, passou a anunciar os voos da "maior companhia aérea do mundial", com a "tradicional hospitalidade soviética". Soaram campainhas de alarme nos gabinetes das chefias militares. E se os aviões comerciais da União Soviética tivessem câmaras e fotografassem território nacional? Era um risco evidente para os chefes militares, que fizeram chegar o alerta ao Governo. Afinal, Portugal era, e é, um país da Aliança Atlântica e havia o risco de fotografias de bases aéreas, algumas delas a servir a NATO, chegarem ao KGB. Ou ao Pacto de Varsóvia, "rival" da Aliança Atlântica num mundo dividido em dois e em Guerra Fria. Eram segredos que, numa época em que não existia o Google Earth, as autoridades portuguesas queriam fechados a sete chaves. Como fechados a sete chaves estão, e continuarão a estar, os planos de defesa do território a um eventual ataque terrestre... da Espanha, hoje um país aliado na União Europeia. Nem sempre o foi, mas, mesmo assim, os planos continuam carimbados e acessíveis a muito poucos olhos. Estas são duas histórias de segredos contadas ao P2 por ex-responsáveis governamentais e antigos chefes militares. Quando se lhes pede uma confirmação oficial, on the record, nem pensar. Os anos passaram, mas quem conta estas histórias prefere manter a sua identidade... em segredo.Segredos e silênciosO segredo cala muitas bocas. E assim continuará a ser. A Lei do Segredo de Estado foi alterada recentemente no Parlamento, mas há uma coisa que não muda: o dever de sigilo de quem "viu" o segredo, mesmo depois de ter deixado as funções. E de que falamos quando falamos de Segredo de Estado? O artigo 2.º da Lei 6, de 1994, define o que é. "São abrangidos pelo segredo de Estado os documentos e informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas é susceptível de pôr em risco ou de causar dano à independência nacional, à unidade e integridade do Estado e à sua segurança interna e externa." O mais óbvio é pensar logo nos planos militares, por exemplo. E é verdade. Mas há também informação classificada quanto a questões económicas e de cariz comercial. No topo da hierarquia da classificação estão segredos transmitidos, "a título confidencial", por Estados estrangeiros ou organizações internacionais - e esses serão os que Portugal terá em maior número, de acordo com o testemunho de ex-governantes ouvidos pelo P2. Não é por acaso que grande parte da documentação relativa aos voos da CIA que passaram por Portugal continua mais que reservada e os activistas dos direitos humanos ainda têm esperança que o Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, desclassifique alguns dossiers do tempo de W. Bush. Classificada pode ainda ser informação de estratégia em negociações com outros Estados ou organizações - aqui, por exemplo, entram dossiers de negociações de Portugal na ONU ou União Europeia ou a participação em operações militares no estrangeiro nos últimos anos. Informação que possa "facilitar a prática de crimes contra a segurança do Estado" também pode ser "carimbada". E não é por acaso que, durante anos, houve informações protegidas sobre a localização de barragens e centrais eléctricas do país. E ainda hoje os planos de contingência (ou de emergência) para a Ponte Vasco da Gama estão sob segredo, assim como os procedimentos em torno da segurança de altas individualidades, como o Presidente ou o primeiro-ministro, por exemplo, dois titulares de órgãos políticos com o poder de pôr o carimbo de "segredo de Estado" a documentos. Os outros são o presidente da Assembleia da República, ministros, e, a título provisório, chefes militares e dos serviços de informações. Um segredo, porém, não é eterno. A regra, no acto da classificação, devidamente fundamentado, é de quatro anos, renováveis. Mas há outro tipo de classificações e outros prazos. No Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, no Palácio das Necessidades, em Lisboa, estão milhares de páginas produzidas pelos diplomatas nas embaixadas portuguesas espalhadas pelo mundo ao longo de séculos. E esses são papéis que não vêem a luz do sol antes de 30 anos passados sobre a data em que foram escritos. Mesmo assim, há documentação que continuará "fechada" - seja porque é informação de um aliado ainda classificada na origem, matérias de defesa e da NATO ou "dados que possam pôr em causa a reputação, honra, bom nome ou imagem de pessoas singulares e colectivas a que digam respeito" - por decisão de uma comissão de selecção e desclassificação, presidida pelo embaixador Duarte de Jesus. Exemplos dos segredos mais secretos não faltam. As pastas relativas à guerra da Coreia estavam, até há pouco tempo, inacessíveis a investigadores, apesar de já ter passado mais de meio século. Pode ser o peso da eterna suspeita de colaboração de Portugal com a China, violando um bloqueio, mas ninguém sabe ao certo. Outro caso: a 30 de Outubro de 1961, a embaixada norte-americana em Lisboa enviou ao Governo português um ofício com o mapa que "mostra os efeitos possíveis de deflagração de uma bomba soviética de 50 megatoneladas" na Europa, 50 vezes mais potente do que a que destruiu Hiroxima. Não se diz onde, mas Portugal seria atingido pelos efeitos. A carta encontra-se no arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, o mapa é que não. Ainda hoje é secreto.E foram os segredos militares da NATO que quase custaram a Portugal uma eventual expulsão da Aliança Atlântica no Verão Quente de 1975. O Governo de Vasco Gonçalves tinha vários ministros comunistas. O secretário de Estado Henry Kissinger estava obcecado pelo risco de Portugal se tornar numa Cuba na Europa. Resultado: os militares portugueses passaram a não ter acesso aos planos atómicos da Aliança, por receio que fossem parar aos soviéticos. Valeu a intervenção do então Presidente, Costa Gomes, durante anos o único militar português a ter visto os planos de defesa da NATO a um ataque nuclear soviético. Segredos mais secretosEstes são segredos do passado. Os do presente vão passar a ser listados na Assembleia da República, que será, nas palavras de Mota Amaral, deputado do PSD e um dos autores da nova lei, "a guardiã do segredo de Estado". Haverá uma comissão de fiscalização do segredo de Estado, "um passo na transparência", nas palavras de Vitalino Canas, o deputado do PS que negociou o diploma com o PSD. E tem poderes de facto. Até pode desclassificar documentos. O presidente do Parlamento, segunda figura do Estado, tem acesso a todos os segredos; os deputados só podem aceder em certas circunstâncias, se tal se justificar. Há segredos que "são mais segredo do que outros", como admitiu Mota Amaral. Único senão, apontado pelo PCP e Bloco de Esquerda: a comissão ter apenas representados deputados dos dois principais partidos. "Uma partidarização" criticada por Fernando Rosas, deputado do BE e historiador, e por António Filipe, do PCP. O segredo foi arma de regimes ditatoriais desde o Estado absolutista do século XVIII aos regimes fascistas e soviético no século XX. Hoje, nas sociedades democráticas e na era da Internet, a transparência é uma palavra de ordem, mas nenhum Estado dispensa os seus segredos. Nem pode dispensar, segundo o embaixador Duarte de Jesus, habituado que está, como disse ao P2, a "tornar públicos maiores ou menores 'segredos'". Transparência, sim, mas segredos são segredos. Duarte de Jesus deixa um alerta: "Hoje o terrorismo internacional e as questões de segurança não permitem 'laxismos' ou maiores aberturas, que penso que a Internet implica."