1975
Ford apoiava independência dos Açores se comunistas ganhassem poder em Lisboa
Por Nuno Simas
É o primeiro documento oficial norte-americano a confirmar que a administração Ford estaria disposta a dar "luz verde" aos independentistas. Se Vasco Gonçalves, o PCP e a esquerda militar tivessem conseguido transformar Portugal numa Cuba no Sul da Europa
Foram apenas 24 minutos de reunião na Sala Oval, em Washington. A 9 de Setembro de 1975, já o primeiro-ministro Vasco Gonçalves, que Kissinger gracejava não ser do PCP apenas para poupar no dinheiro das quotas, tinha caído em desgraça, demitido dez dias antes. E o "grupo dos nove", a tendência moderada do Movimento das Forças Armadas (MFA), começava a ganhar poder num país a viver a vertigem de uma revolução. Passara apenas um ano após a "revolução dos cravos", a 25 de Abril de 1974, com a queda de Marcelo Caetano e de 48 anos de ditadura. Na tarde dessa terça-feira, entre as 17h10 e as 17h34, o Presidente Gerald Ford recebeu a congressista republicana Margaret Heckler, eleita pelo Massachusetts e representantes de associações portuguesas nos Estados Unidos, em que se incluía uma grande comunidade de açorianos.Queriam que Ford se pronunciasse de forma directa contra a "tirania comunista" em Portugal. O Presidente norte-americano resistiu a fazer tão radical declaração. Afinal, dizia, o Governo de Pinheiro de Azevedo, o almirante do grupo dos "moderados", era "melhor", democrático, e era preciso dar tempo ao tempo. E é na acta dessa reunião (depositada na Ford Library - http://www.fordlibrarymuseum.gov/) que Ford faz uma declaração surpreendente. A testemunhá-la estiveram o adjunto de Kissinger como conselheiro de segurança nacional, o general Brent Scowcroft, e Denis Clift, do Conselho de Segurança Nacional. É o primeiro documento oficial da administração dos Estados Unidos - revelado ao abrigo da política de desclassificação dos arquivos americanos - em que é tão abertamente assumido o apoio norte-americana à independência das ilhas portuguesas onde os Estados Unidos têm uma base na ilha Terceira desde a II Guerra Mundial. Uma simpatia que, afinal, teve um prazo de validade: enquanto o "gonçalvismo" estivesse no poder em Lisboa e fosse uma ameaça comunista num mundo dividido pela Guerra Fria, com os EUA de um lado e a URSS do outro. Imagine-se o cenário extremo de o "inimigo" soviético ter acesso, via Portugal, à Base das Lajes, no oceano Atlântico, a meio caminho entre a Europa e os Estados Unidos e o desequilíbrio que isso poderia causar entre as duas superpotências? Era isso que estava na mente de muitos estrategos do Pentágono e do Departamento de Estado. Os avisos americanos contra o domínio comunista no país foram sendo transmitidos ao mais alto nível, tanto na visita do Presidente Costa Gomes a Washington, ainda em 1974, como em Maio de 1975, num encontro, em Bruxelas, com Vasco Gonçalves, à margem de uma cimeira da NATO.À congressista Margaret Heckler e aos representantes dos portugueses nos Estados Unidos disse Gerald Ford: "Estamos também preocupados com os Açores. As Lajes têm grande importância. Temos que ter cuidado neste momento, em que os portugueses estão a evoluir de um Governo comunista, sob a liderança de [Vasco] Gonçalves, para um Governo democrático... Não podemos ter qualquer acção que possa prejudicar o novo Governo. Se os Açores se tornassem agora independentes, isso teria um reflexo negativo no novo executivo."Até aqui, nada de novo - era a política de neutralidade quanto à questão açoriana, que teve no embaixador norte-americano em Lisboa, Frank Carlucci, um dos grandes defensores. A nuance viria umas linhas mais abaixo, na acta da reunião, e essa, sim, é significativa: "Teríamos ficado contentes se [a independência] tivesse acontecido durante o Governo comunista, mas agora, com um Governo melhor, é necessário cuidado." Nem Henry Kissinger, o todo-poderoso secretário de Estado, que não esteve no encontro, nem qualquer outro responsável da administração de Ford tinham sido tão directos no apoio à independência das ilhas açorianas. Pelo menos on the record e em documentos norte-americanos que foram sendo desclassificados ao longos dos últimos dez, quinze ou vinte anos... A CIA, que deu alertas para um possível golpe separatista em 1975, tem todos os seus arquivos fechados. E raros foram os "papéis" que a "secreta" americana abriu aos olhares de jornalistas e historiadores.A ameaça de expulsãoDurante meses, no Verão Quente de 1975, Kissinger viveu obcecado com Portugal e com o risco de ter um Governo comunista num país da NATO - uma espécie de Cuba no Sul da Europa. Os Estados Unidos tinham interesses estratégicos na Base das Lajes, na Terceira, um verdadeiro porta-aviões no Atlântico desde a década de 40. Foi por isso que o Presidente Gerald Ford tentou perceber qual seria a reacção dos aliados europeus à independência dos Açores e cedo compreendeu, de uma conversa com Helmut Schmidt, o chanceler alemão, nesse ano de 1975, que Washington ia ficar isolado. Talvez lhe restasse a França. E a CIA, activa nas ilhas e com muitas "fontes" entre os separatistas açorianos, alertou, durante o Verão Quente, para uma possível revolta ou golpe nos Açores. Com o apoio de grupos de direita, exilados em Espanha, por exemplo. E o cenário de expulsão de Portugal da NATO foi bem mais do que isso. Washington desconfiava tanto dos generais portugueses que não entregava segredos da Aliança a Portugal, com medo de irem parar às mãos do inimigo soviético, em Moscovo. Mário Soares, o líder socialista e um aliado à esquerda dos americanos contra a ameaça "vermelha", percebeu os riscos e avisou que admitia sair da NATO se os Estados Unidos apoiassem os independentistas açorianos. Oficialmente, Washington garantiu, de 75 até hoje, ter mantido a neutralidade quanto à questão açoriana, mas a tentação da "acção" existiu. Os contactos informais com personalidades próximas da Frente de Libertação dos Açores (FLA), através de Denis Clift, do Conselho de Segurança Nacional, foram sendo cultivados, embora sem promessas de apoio à causa da independência das ilhas de um país a radicalizar-se à esquerda. Era a estratégia de manter os independentistas em "lume brando", não viessem a ser necessários para manter a Base das Lajes.Açores e GuantánamoAté agora, a tentação do apoio de Washington à causa separatista estava subentendida nos muitos milhares de papéis desclassificados dos arquivos norte-americanos. Afinal, esse desejo de independência das ilhas está em letra de forma e tem um rosto - o próprio Gerald Ford, que confessa que teria ficado feliz se os Açores se tornassem independentes.Em Setembro de 1975, a congressista Heckler, Joseph Fernandes e Júlio d'Oliveira, da Federação Luso-Americana nos Estados Unidos, queriam posições mais duras contra "os comunistas" portugueses. Ford advertiu que a independência dos Açores seria negativa nessa fase. É certo que o calendário ainda estava na página de Setembro e que o Verão Quente ainda aqueceu o país até ao 25 de Novembro - o princípio do fim da revolução e o começo da "normalização" democrática - mas Ford via agora riscos na acção directa dos independentistas. A tentação independentista açoriana não terá passado de uma ilusão para os açorianos e de uma estratégia de último recurso para a administração Ford. De um lado e de outro do Atlântico, a Base das Lajes foi uma peça central neste enredo. Mesmo que Portugal se tivesse tornado um regime comunista, incluindo os Açores, estariam os Estados Unidos condenados a abandonar a Base das Lajes? O general Pezarat Correia, um militar de Abril, escreveu que não no livro Questionar Abril. Guantánamo, na ilha de Cuba de Fidel, é a prova de que os EUA "estão onde querem e não onde os deixam".
http://jornal.publico.clix.pt/noticia/03-09-2009/1975-ford-apoiava-independencia-dos-acores-se-comunistas-ganhassem-poder-em-lisboa-17710145.htm
No comments:
Post a Comment