Friday, December 04, 2009

China/1975: Kissinger com Portugal na agenda


O presidente norte-americano reuniu-se, em Dezembro de 1975, com Mao Tse Tung, em Pequim. Afinal, como gracejava Kissinger, o eterno chefe da diplomacia norte-americana, a China, arqui-rival da União Siviética, era “o melhor aliado da NATO”…
Parte das conversações preparatórias de Kissinger em Pequim, em Outubro, para a cimeira de Dezembro de 1975 aparecem descritas no capítulo 6 do livro, “À volta do Mundo” – a diplomacia “passeava” a sua preocupação com Portugal nos encontros, em 1974 e 1975, com os líderes mundiais. Ao contrário do que escrevi no livro, Kissinger e Ford levaram Portugal para a mesa das conversações com Mao, a 2 de Dezembro. E é sobre isso o meu próximo post.

(reproduzo a parte do capítulo sobre essas conversações, incluindo as notas na numeração original. A foto é de Abril de 1974, durante uma visita de Deng a Nova Iorque - Colecção Bettman, Corbis Images)

Kissinger avisa China que Estados Unidos não permitiriam golpe comunista

Henry Kissinger tem, em 1975, uma agenda carregada e reúne-se por diversas vezes com dirigentes políticos da China, incluindo o próprio Mao Tse Tung, em Pequim. Afinal, a China era arqui-rival da União Soviética e, como brincava Kissinger, o “melhor aliado da NATO”… (21)
Em 1974 e 1975, há pelo menos três encontros de Kissinger com líderes chineses em que a revolução portuguesa é abordada. Um, a 27 de Novembro de 1974, juntou Kissinger e o vice-primeiro-ministro Deng Xiaoping em Pequim. Outro foi ao jantar, a 28 de Setembro de 1975, com Qiao Guanhua, ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, nas Torres Waldorf, que estava em Nova Iorque para uma reunião da ONU. Por último, um mês depois, a 21 de Outubro de 1975, Kissinger voltou a encontrar-se com Deng, no Grande Palácio do Povo, em Pequim, pouco antes de um frente-a-frente com o líder chinês, Mao Tse Tung. Com Mao, porém, Portugal é ignorado.
O chefe da diplomacia norte-americana reúne-se a 28 de Setembro de 1974 com Deng Xiaoping. Além da preparação da visita de Gerald Ford, dos perigos de uma guerra nuclear da Jugoslávia e das negociações com a União Soviética para o desarmamento, os dois políticos analisam o eurocomunismo. O secretário de Estado norte-americano está preocupado com o facto de os comunistas italianos e franceses seguirem uma estratégia de se apresentarem como “moderados e muitos responsáveis”. É Kissinger que explica a Deng a estratégia de Washington: “Quando se analisa a nossa política externa tem que compreender que fazemos certas coisas e dizemos certas coisas para paralisar não só a nossa esquerda mas também a esquerda europeia. Por isso, nós opomo-nos, e resistiremos, à entrada da esquerda em governos europeus. Faremos isso em Portugal porque não queremos que seja um modelo para outros países. Faremos o mesmo em Itália. E, claro, em França.
Kissinger dramatiza a determinação da administração norte-americana a “resistir” a uma vitória comunista em eleições na Itália e na França pelo “sério impacto” que teriam na NATO e na conjuntura política da República Federal da Alemanha. Deng Xiaoping responde a Kissinger com uma visão menos dramática quanto ao fenómeno do eurocomunismo e prevê que “eles [os eurocomunistas] são professores pela negativa”.
Do outro lado do mundo, os chineses pouco poderia fazer para ajudar os Estados Unidos a resistir às ameaça vermelha no sul da Europa, como Deng afirmou a Kissinger, para tentar impedir que os aliados dos soviéticos dominassem a situação em Portugal. Mas em ambos os encontros, o secretário de Estado norte-americano parece resoluto em explicar ao governo de Pequim a estratégia de Washington contra o inimigo comum – a União Soviética. É isso que faz com o ministro dos Negócios Estrangeiros no jantar nas Torres Waldorf, em Nova Iorque.

Qiao: Como vê a situação em Portugal?
Kissinger: (…) Como uma superpotência [a URSS] tem estado activa, nós não podíamos ficar atrás. Basicamente pensamos que se trata de uma questão interna portuguesa. E, devido à nossa situação interna [o escândalo Watergate em 1974, no ano do golpe do 25 de Abril, as alegações de apoio ao golpe de direita de Pinochet, no Chile, e a demissão de Richard Nixon], não pudemos fazer muito.
Estamos a trabalhar com os nossos aliados europeus para impedir que os grupos apoiados por Moscovo venham a dominar [o país]. Registaram-se alguns progressos tácticos – um grande avanço táctico [a demissão de Vasco Gonçalves e sua substituição por Pinheiro de Azevedo à frente do Governo] – na situação. O problema agora é saber se os nossos aliados europeus vão celebrar a vitória ou se percebem que esses grupos pró-Moscovo têm de ver sistematicamente reduzida a sua influência.
Qiao: Essa será uma luta a longo prazo. Independentemente do que diga aos seus aliados europeus, nós vamos dizer aos nossos amigos europeus para não sobrevalorizarem a força dos partidos comunistas. Nós conhecemos melhor os partidos comunistas do que vocês. Uma vez, dissemos aos nossos amigos europeus para darem poder aos pretensos partidos comunistas. Deixarem-nos tomar o poder e revelarem-se. Eles responderam-nos que jamais aceitariam isso.
Kissinger: Nem vocês aceitariam. Quer dizer, deixá-los tomar o poder em Portugal ou em qualquer outra parte?
Qiao: Portugal... No caso de Portugal, o Partido Comunista não controla as Forças Armadas.
Kissinger: Nós não sobrestimamos a força do Partido Comunista em Portugal. Temos de deixar a situação amadurecer até um certo ponto. Primeiro, não tivemos uma situação interna favorável; em segundo lugar, tivemos de levar a Europa Ocidental a entender a situação; em terceiro lugar, tínhamos que ter a certeza de que [Mário] Soares não era um Kerensky [líder social-democrata russo derrotado pelos comunistas na revolução bolchevique de 1917].
Em todo o caso, a situação em Portugal está numa fase em que pode evoluir nos dois sentidos [democracia pluralista ou domínio comunista].
Qiao: Bom, penso que se os nossos amigos europeus, apoiados pelos nossos amigos americanos, seguirem uma estratégia com habilidade, os soviéticos não vão conseguir dominar [Portugal]. (22)

Passa um mês e Henry Kissinger está agora em Pequim. A 21 de Outubro de 1975 encontra-se com Deng Xiaoping. É uma quarta-feira e o encontro dá-se numa residência dos convidados estrangeiros, na capital chinesa. Deng ouviu a exposição de Kissinger sobre a estratégia de Washington quanto à Europa do Sul, inclusivamente a promessa norte-americana de resistir às tentativas de tomada do poder pelos grupos apoiados pela URSS. Ainda que isso levasse a uma guerra civil em Portugal. E, nesse cenário, a intervenção americana ganhava peso.
Deng Xiaoping avisa Kissinger que Pequim pouco pode fazer para ajudar além de adiar o estabelecimento das relações diplomáticas com Lisboa. E alerta que apesar de a situação portuguesa estar a melhorar – após a demissão do “vermelho” primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, e a sua substituição pelo almirante Pinheiro de Azevedo, um “moderado” –, poderem ainda registar-se “muitas reviravoltas”.

Deng: (…) Se estiver interessado, podemos falar do flanco sul da Europa.
Kissinger: (…) No sul da Europa, temos Portugal, Espanha, Itália, Grécia e Turquia. Cada um com uma situação diferente.
No caso de Portugal, encontramos uma situação em que, resultado de 40 anos de um regime autoritário, as forças democráticos não estão organizadas e as estruturas políticas democráticas são muito fracas. Os militares adoptaram, em parte, a filosofia dos movimentos de libertação africanos, que combateram durante 25 anos. E o Partido Comunista de [Álvaro] Cunhal, que passou parte do seu exílio na Checoslováquia – curiosa escolha para exílio – está, e muito, sob a influência da União Soviética. [Deng inclina-se e cospe para uma escarradeira ao lado da cadeira].

Perante o vazio, o Partido Comunista conseguiu uma influência desproporcionada e, por algum tempo, parecia estar à beira de dominar a situação. Acho que esta tendência foi travada. E estamos a trabalhar com os nossos aliados da Europa Ocidental para reforçar e a apoiar as forças que se opõem a Cunhal. Infelizmente, algumas dessas forças são melhores na retórica do que na organização, mas achamos que a situação melhorou e vai continuar a melhorar.
Deng: Ouvimos nas notícias que alguns oficiais que estavam sob o comando de…
Qiao:… [Vasco] Gonçalves.
Deng: … estão a preparar um golpe.
Kissinger: Sim. Tivemos a informação esta manhã que numa unidade [Tancos] eles se recusaram a entregar armas.
Deng: Segundo as notícias, esses oficiais estarão a preparar alguma coisa para 11 de Novembro, que é a data da independência de Angola. Informações assim tão precisas não podem ser fidedignas, seguras.
Kissinger: Não, nós também não acreditamos. Temos um relatório segundo o qual uma unidade militar se recusa a entregar as armas. E não há dúvidas de que [Vasco] Gonçalves está do lado da União Soviética. Mas esperamos… Nós estamos em contacto com um número razoável de líderes militares que estão contra o golpe e que vão opor-se a ele.
Deng: Mas nós achamos que Portugal ainda pode sofrer muitas reviravoltas.
Kissinger: Concordo.
Deng: E muitas provas de força. Não estamos em condições de fazer o quer que seja nessa parte do Mundo, Mas há uma coisa que podemos fazer. Portugal tentou já muitas vezes estabelecer relações diplomáticas connosco, e nós recusámos. O nosso ponto de partida é muito simples: nós não queremos fazer nada que ajude os soviéticos a ganhar controlo da situação.
Kissinger: Creio que essa é uma opção sensata. Nós apoiamos [Melo] Antunes e [Mário] Soares. [Deng inclina-se outra vez e cospe de novo.] Antunes esteve em Washington há poucas semanas e estamos a cooperar com ele. Mas concordo que vai haver ainda muitas provas de força. E a dificuldade com os nossos aliados ocidentais é que eles baixam os braços depois de alguns sucessos passageiros.
Quando voltarmos a encontrar-nos em Dezembro, já a situação estará muito mais clara. Mas nós estamos determinados a resistir a qualquer tentativa de tomada de poder pelos soviéticos, ainda que isso leve a um conflito armado. Não vamos facilitar. Não será fácil para eles, e quero sublinhar isso, se eles estiverem a planear um golpe, não será nada fácil para eles.
Agora em Espanha, a situação é mais complicada. Temos, por um lado, um regime nos seus derradeiros dias, porque Franco está muito velho. Por outro lado, não queremos que a situação de Portugal se repita em Espanha. (23)

(21) BURR, William, “The Kissinger Transcripts – The Top-Secret Talks with Beijing and Moscow”, The New Press, New York, 1998.
(22) Memorandum, September 28, 1975, Kissinger, Qiao, box 16, National Security Adviser, Memoranda of Conversation, Gerald Ford Library.
(23) Memorandum, October 21, 1975, Kissinger, Deng Xiaoping, box 16, National Security Adviser, Memoranda of Conversation, Gerald Ford Library

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