Wednesday, July 09, 2008

Eugénia Cunhal


Eugénia Cunhal, irmã do líder histórico do PCP, é militante comunista; pertence ao sector intelectual do partido em Lisboa, onde também milita, por exemplo, Manuel Gusmão.

Eugénia Cunhal, irmão de Manuel Tiago, escreve mensalmente no jornal “A Voz do Operário”. Crónicas literárias.
Esta foi publicada em Março, em português escorreito, sem mácula. Esta é triste.

A Velha

Entrou. Passo miúdo e lento. Costas em arco, escondidas por baixo do tecido estampado de ramagens coloridas. Talvez a busca inconsciente da alegria. Pano do pó preso na mão flácida. Uma moldura de cabelos recém-cortados, a tentar dar um pouco de cuidado ao rosto de linhas vincadas. De olhar parado. Sem espera.
Então, D. Luísa… Havia uma ironia escondida nas vozes que se cruzavam no espaço largo, semeado de mesas e cadeiras.
- A velha voltou. Ali estava, de regresso. – Meteu baixa por causa da filha – segredava-se. Aquela filha que ninguém conhecia. Aquela filha doente que lhe ocupava o pensamento durante todas as horas que passava a trabalhar fora de casa. Aquela filha que, desde criança, era o seu maior cuidado. Que ia crescendo sem tino. Quantas vezes chegava a casa, não a encontrava e corria para a rua, a procurá-la, a trazê-la de volta.
- A senhora devia reformar-se. Tem quase sessenta anos. A ironia voltava. Não dava por isso. E os olhos concordavam. Porque já mal aguentavam as noites mal dormidas, cortadas pela inquietação. Os dias arrastando-se nas limpezas. Do chão. Dos móveis. Dos vidros das janelas. E o peso do corpo cada vez maior, que tornava os movimentos mais penosos. Mais difíceis. Claro que sonhava com a reforma. Sobretudo quando olhava para trás e recordava que começara a trabalhar ainda mal fizera dez anos. Ficara em casa, cuidando da sua menina para que nada de mal lhe acontecesse. Sem necessidade de inventar novos sítios para esconder os fósforos. As facas. Qualquer coisa que se pudesse transformar num perigo inconsciente. Sonhava com a reforma, sim. Mas não gostava que lhe dissessem que devia reformar-se. Cortava nas despesas o que podia. Até nos medicamentos, cada vez mais caros. Tal como a conta da electricidade, por mais que fosse diminuindo a força das lâmpadas. Tal como a parca comida que conseguia pôr na mesa. Diziam-lhe também, olhando para o seu corpo deformado, que devia fazer uma dieta.
Uma manhã, bastante cedo, uma vizinha que costumava ir à mesma hora que ela para o trabalho, notou-lhe a ausência. Bateu à porta. Uma, duas vezes.
Luísa estava deitada, sem conseguir fazer qualquer movimento com as pernas.
Alguém foi obrigado a separar os braços dela e da filha que se entrelaçavam desesperadamente.

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