Sunday, July 06, 2008

Vasco Gonçalves e a estratégia do PCP



Na cronologia do PCP, há um dia e um acontecimento especialmente relevantes no Verão Quente: o Comité Central de 10 de Agosto em Alhandra. Aí Álvaro Cunhal, lança as bases de uma estratégia que incluía pontes de diálogo, à sua direita.
Socorro-me de um artigo de Armando Rafael, no DN, publicado a 10 de Outubro de 2005 – “Álvaro Cunhal salvou PCP afastando Vasco Gonçalves”. “A famosa reunião do Comité Central que o PCP efectuou em Alhandra, no dia 10 de Agosto” foi o “momento em que o secretário-geral dos comunistas impôs alguma contenção à euforia que se instalara depois do 11 de Março, antecipando, num discurso que permaneceu secreto [durante algum tempo], as linhas do acordo do 25 de Novembro”.
Depois de reler o artigo do Armando, uma eventual estratégia de aproximação aos aliados britânico e alemão de Mário Soares faz todo o sentido. O que – na estratégia das “simultâneas de xadrez”, expressão de um ex-dirigente comunista – não é obrigatoriamente contraditório com a tese de Josep Sanchez Cervelló ou da investigação do José Manuel Barroso, na década de 90 no DN, de que a ordem para a saída dos quartéis no 25 de Novembro partiu de militantes do PCP. E que acabou por resultar, além de vários dias de tensão e confrontação, num “reordenamento” das forças revolucionárias e a sobrevivência do PCP.


Álvaro Cunhal salvou PCP afastando Vasco Gonçalves


A história do PREC é razoavelmente omissa sobre uma famosa reunião do Comité Central que o PCP efectuou em Alhandra, no dia 10 de Agosto. Um momento em que o secretário-geral dos comunistas impôs alguma contenção à euforia que se instalara depois do 11 de Março, antecipando, num discurso que permaneceu secreto, as linhas do acordo do 25 de Novembro.

Quarenta e oito horas depois de o V Governo Provisório ter tomado posse, o PCP reuniu, discretamente, o seu Comité Central (CC) em Alhandra para ouvir Álvaro Cunhal alertar o partido para a forte possibilidade de Vasco Gonçalves poder ter os dias contados como primeiro-ministro.
Foi um discurso proferido a 10 de Agosto de 1975, recheado de improvisos que só viriam a ser integralmente conhecidos anos depois, e que caiu como um balde de água fria para quem não esperava ouvir o secretário-geral do PCP tirar o tapete a uma figura com a qual os comunistas tanto se identificavam.
Ao ponto de lhe terem prometido resistir a todas as ofensivas, garantindo total solidariedade - Força, força, companheiro Vasco, nós seremos a muralha de aço.
Um “slogan” mobilizador para quem se identificava com a governação e o estilo do Companheiro Vasco, mas que não resistia à análise fria dos dirigentes comunistas que se moviam nos bastidores do Processo Revolucionário em Curso (PREC). Como Álvaro Cunhal, Jaime Serra, Carlos Costa, Octávio Pato ou Carlos Brito.
Todos eles já tinham percebido que os comunistas e, em especial, a esquerda militar que lhes era afecta (gonçalvistas) não tinham, naquele momento, força suficiente para impor os seus pontos de vista, razão pela qual era necessário reformular a estratégia que estava a ser desenvolvida.
Mesmo que isso os obrigasse a fazer concessões ou a ter de retomar o diálogo perdido com o Grupo dos Nove (que, por sinal, divulgara o seu famoso documento nas vésperas de o PCP reunir o Comité Central). Ou com o PS (que acabara de fazer uma grande demonstração pública da sua força com o comício da Fonte Luminosa). Ou até com Otelo Saraiva de Carvalho, apesar do revés que a viagem do comandante do Copcon a Cuba evidenciara, contribuindo para o afastar ainda mais do PCP.
Improvisos. "Uma melhor clarificação da situação interna no MFA teria sido desejável antes da formação do novo governo como garantia para a sua eficiência", explicou Cunhal, num dos tais acrescentos que não constam do discurso oficial distribuído na altura.
"Aqui informo", prosseguiu, "que, depois da formação do Directório [Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho], da discussão sobre a eventual participação de Otelo como vice-primeiro-ministro, de termos dado o nosso apoio à formação de um Governo sem participação partidária [o V Governo Provisório] (...), ao sabermos que Otelo se recusava a ser vice-primeiro-ministro, fizemos diligências imediatas, algumas junto do primeiro-ministro, para dizer que púnhamos muitas reservas à formação do novo governo e que (...) entendíamos que não devia ser formado, nem anunciado esse governo sem antes estar esclarecida a situação militar."
Uma preocupação que o próprio Álvaro Cunhal se encarregaria de explicitar mais à frente. "Tudo indicava que se formava o Governo num dia com o nosso apoio e a nossa participação para cair noutro dia. E a cair no outro porque não tinha qualquer apoio militar, não tinha qualquer possibilidade de fazer executar qualquer das suas decisões (..) Este governo formava-se e, contestado, caía em dois tempos. Por isso diligenciámos, e aqui está uma das tais iniciativas que muitas vezes a Comissão Política tem que tomar em situações novas e que não estão conforme com a perspectiva do Comité Central."
Para que não subsistissem dúvidas entre os elementos do Comité Central que o ouviam, e que eventualmente dele discordavam, o secretário-geral do PCP foi ainda mais longe na sua tese "Tomámos a responsabilidade de comunicar que não apoiávamos a constituição desse governo com Vasco Gonçalves, se na verdade não houvesse um apoio militar. Daí já termos afirmado que, a nosso ver, a solução encontrada não exclui possibilidades de recomposições, reajustamentos e reconsiderações que possam aumentar a eficiência do Governo e alargar a sua base de apoio social e política. Da parte da esquerda militar, sem exclusão de ninguém, vemos muito sectarismo. Não dá qualquer abertura e isso pode precipitar a sua queda.
Por isso esta solução governamental não pode ser rígida. Ao contrário. Devem procurar-se ajustamentos, devem procurar-se modificações que respondam à actual situação. A médio prazo as soluções podem ser outras."
Advertências. Como explicar, então, que Vasco Gonçalves tenha, apesar da reticências do PCP, tomado posse como primeiro-ministro de um governo que, à partida, todos sabiam estar já condenado?
Aparentemente, isso sucedeu porque era preciso ganhar tempo. Como o presidente da República, Costa Gomes, deixara já claro, no discurso da cerimónia de posse do V Governo Provisório, efectuada dois dias antes da reunião de Alhandra "A solução que hoje vos apresento é uma medida transitória, um governo de passagem que se espera seja a pausa política para, em clima de ordem, disciplina e trabalho, se poder constituir algo de mais definitivo."
Um sinal e uma mensagem devidamente articulada por Costa Gomes com os sectores moderados do MFA, com Otelo Saraiva de Carvalho, com o PS, mas também com o PCP e Álvaro Cunhal, que, assim, se preparavam para deixar cair Vasco Gonçalves como primeiro-ministro, esperando, no entanto, que o sacrifício do Companheiro Vasco como primeiro-ministro pudesse vir a ser ainda devidamente compensado pela sua nomeação para chefe do Estado-Maior-Ge- neral das Forças Armadas (CEMGFA). Onde iria substituir o próprio Costa Gomes, na sequência da mesma lógica que, alguns dias antes, levara já à constituição de um Directório que era suposto assumir-se como uma espécie de vanguarda da revolução.
PCP ausente. É isso que explica também as razões por que o PCP não permitiu, como Cunhal frisou em Alhandra, que o dirigente comunista Veiga de Oliveira tivesse continuado no Governo como ministro, situação que se aplicava igualmente ao líder comunista que integrou todos os executivos até ao IV Governo Provisório, embora isso não tenha sido mencionado. Um silêncio que lhe permitiu contornar ainda a presença de outros militantes do PCP no último executivo de Vasco Gonçalves, como Carlos Carvalhas ou Armando Teixeira da Silva, que constavam do elenco dos secretários de Estado.
Arrastamento. "Tomámos essa decisão", sublinhou, "para não nos comprometermos com uma solução muitíssimo incerta. E também para não nos arriscarmos a cair como força política com a queda do próprio governo formado por Vasco Gonçalves sem um apoio militar. (...) Pensámos, já nesse momento, guardar um campo de manobra política para o nosso partido, que não nos atrelasse necessariamente a uma previsível queda do Governo de Vasco Gonçalves (...) e nos desse margem para reconsiderar a composição do Governo e a sua própria chefia."
Uma referência, subtil, ao facto de o PCP estar também a posicionar-se já para influenciar o processo de designação de um novo primeiro-ministro e de um novo governo (do qual Veiga de Oliveira voltaria a fazer parte), que pudesse proteger o partido do desgaste provocado por Vasco Gonçalves, dando-lhe o tempo suficiente para que ele se reorganizasse. Tendo sempre em linha de conta a necessidade de reposicionar o partido perante as novas correlações de forças que começavam a impor-se.
"A divisão do MFA e a ofensiva da reacção são (...) muito perigosas e devemos por isso considerar as alternativas. Um dos males é que a esquerda militar sobrestima a sua força", alertou Cunhal, que não hesitaria igualmente em renovar as suas críticas ao sectarismo evidenciado pelos militantes comunistas que não dialogavam com elementos de outros partidos revolucionários e até com os militantes do PS.
Chile. Tudo porque o PCP temia que os exageros revolucionários da actuação dos governos e da retórica de Vasco Gonçalves pudessem acabar por pôr em causa o peso da esquerda militar no seio do MFA, arrastando o país para uma nova ditadura ou um regime autoritário que excluísse os comunistas, repetindo em Portugal aquilo que se verificara no Chile, onde o golpe militar liderado por Pinochet levara à perseguição e à eliminação sistemática dos comunistas e outros militantes de esquerda.
"Não nos devemos deixar encostar ao muro", advertiu Álvaro Cunhal em Alhandra. Não espanta, por isso, que o secretário-geral do PCP tivesse dedicado uma parte substancial do seu discurso perante o CC à análise da nova correlação de forças que começara a fazer-se sentir no seio do MFA, e que encorajou o Grupo dos Nove (com apoio e cumplicidade de Otelo Saraiva de Carvalho) a liderar a contestação aos gonçalvistas.
"A balança de forças não está nítida. Não está. Pode haver força bastante para ir para uma solução em que o poder político continua nas mãos da força militar de esquerda (...), mas pode admitir-se que a força não baste para manter uma tal situação. Seja com o risco de um golpe militar, com possibilidades reais de triunfo, seja com o risco do triunfo de operação política mesmo sem ter necessidade de um golpe militar mas com o apoio das forças armadas. Isto não está excluído e nas últimas semanas temos estado muitas vezes perto de situações que se nos afiguram aproximar-se duma tal situação em que possa haver um desequilíbrio de forças favorável à direita. (...) E quando digo à direita, não digo tanto a direita reaccionária (...), mas à direita do que tem sido até hoje uma parte do MFA, com o apoio político do PS e outros. Não é de excluir que possa haver um desequilíbrio nesse sentido."
Antecipação. Palavras premonitórias sobre a sucessão de acontecimentos que viriam a desembocar no 25 de Novembro, sem que o PCP tivesse conseguido implementar a nova estratégia que acabaria por ser ratificada no Comité Central de Alhandra. E que passava, no essencial, pelo retomar do diálogo com o Grupo de Nove.
Um objectivo que seria parcialmente atingido, como se constataria três meses depois, quando o PCP acabou por ser publicamente absolvido através de uma célebre declaração proferida por Melo Antunes na televisão.
Quanto ao resto, a proposta acabou por esbarrar na intransigência manifestada pelo PS, por Mário Soares e por Otelo Saraiva de Carvalho, o que levaria o PCP a atirar- -se (ainda que temporariamente) para os braços da extrema-esquerda, criando a Frente de Unidade Revolucionária (FUR), com a UDP, MES, PRP/BR, LUAR, LCI, MDP- -CDE e FSP, ou impulsionando os SUV (Soldados Unidos Vencerão). Sem que Álvaro Cunhal e a direcção do PCP conseguissem travar os ímpetos mais radicais de alguns dos seus compagnons de route, como os episódios em torno do 25 de Novembro viriam a demonstrar.
Queda. Mas, nessa altura, já Cunhal e o PCP tinham deixado cair Vasco Gonçalves e constatado o erro da aposta que os comunistas tinham feito em Pinheiro de Azevedo para o substituir.
Mas isso seria depois. Muito depois. Em pleno Verão Quente de 1975, a estratégia era bem diferente, como o sucessor de Vasco Gonçalves recordou, alguns anos depois, num livro de memórias que dedicou a esse período [ 25 de Novembro sem Máscara].
"O PC deixou de lhe dar cobertura (...).Vasco Gonçalves fora útil, mas estava a tornar-se prejudicial, com o seu extremismo desvairado, que poderia levar o país à guerra civil (...). Ora uma guerra civil não interessava a ninguém. Nem interna nem externamente. O PC, manifestamente, achou que Vasco Gonçalves já cumprira o seu papel."

Ver os originais em

http://dn.sapo.pt/2005/08/10/nacional/alvaro_cunhal_salvou_afastando_vasco.html

e

http://dn.sapo.pt/2005/08/10/nacional/simultaneas_xadrez_inspiram_no_prec.html

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